O regulamento eudr como fonte de transformações territoriais

1. Introdução

A Lei da União Europeia para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR) é um regulamento da UE que estabelece padrões ambientais e de legalidade para produtos que entram no mercado da UE. Seu objetivo é reduzir o impacto da UE sobre o desmatamento, a degradação florestal e a perda de biodiversidade, tendo como alvo sete commodities agrícolas de alto risco (soja, gado, óleo de palma, madeira, cacau, café e borracha). Do ponto de vista jurídico, a EUDR é um ato interno da UE que rege quais produtos podem entrar no mercado da UE e ser exportados. No entanto, a teoria da mudança por trás da regulamentação está intrinsecamente ligada à ideia de que as medidas unilaterais adotadas em um ponto da cadeia de valor podem deslocar (no sentido de transformar) as práticas e a dinâmica socioambiental em outro ponto da cadeia, tornando-a uma forma de regulamentação acoplada, que deve ser analisada e compreendida conectando-se os diferentes pontos das cadeias1.

Portanto, a EUDR vai além de ser uma mera regulamentação da UE; é uma forma de regular as Cadeias Globais de Valor (CGVs), influenciando todas as suas fases, inclusive a dinâmica territorial nas regiões produtoras. No contexto do projeto de pesquisa EPICC, foram realizadas entrevistas e observações para examinar a EUDR através das lentes da dinâmica territorial de três regiões conectadas ao mercado da UE. Assim, o projeto investigou as implicações territoriais da EUDR, explorando as possíveis consequências ligadas à sua adoção e implementação. Foram identificadas cinco possíveis mudanças possíveis de serem promovidos a partir do estabelecimento da EUDR:

  1. uma mudança do volume de exportação/produção que ia para o mercado da UE para outros mercados que não regulam o desmatamento de forma semelhante;
  2. uma mudança do desmatamento para outros ecossistemas que não estão atualmente cobertos pela definição de livre de desmatamento, mas que podem ser cobertos no futuro;
  3. uma mudança da produção/comercialização para outras commodities não cobertas pelo escopo do regulamento, mas que podem ser cobertas no futuro;
  4. uma mudança na propriedade da terra e uma intensificação da concentração; e
  5. uma mudança da produção, direcionada atualmente para segurança alimentar local/autonomia alimentar, para a produção de culturas comerciais para o mercado europeu.

A avaliação de impacto da Comissão em 2021 reconheceu as quatro primeiras mudanças, mas muitos stakeholders da UE, de acordo com as entrevistas, as reconheceram apenas parcialmente ou permaneceram céticas. Tanto a avaliação de impacto quanto as respostas dos stakeholders, no entanto, ignoraram os impactos socioecológicos da EUDR além da produção, especialmente no que diz respeito aos direitos de posse da terra, conflitos e segurança alimentar futura. A abordagem desses aspectos teria exigido um envolvimento mais profundo com as comunidades locais e uma regulamentação mais personalizada, o que excede a viabilidade do órgão regulador da UE.

2. Mudança de produtos não livres de desmatamento para outros mercados

Os requisitos mais rigorosos de ausência de desmatamento e legalidade no mercado da UE para commodities específicas podem levar ao desvio do comércio para mercados globais menos rigorosos (o chamado vazamento). Isso ressalta o caráter transnacional do regulamento, mas também aponta para possíveis limitações na eficácia geral da EUDR. Embora o regulamento vise à “sustentabilidade” e à redução do desmatamento, existe o risco de transferir o desmatamento para outros mercados, o que pode não conter a tendência geral de desmatamento. Por outro lado, a perspectiva de futuras regulamentações em outros mercados poderia acelerar as taxas de desmatamento, já que os países podem tentar evitar condições semelhantes às impostas pela UE.

Figura 1: Contêiner de transporte em Waltershof, Alemanha. Foto: Bernd Dittrich no Unsplash

Várias organizações não governamentais (ONGs) levantaram a possibilidade de empresas e pequenos proprietários redirecionarem seus produtos para mercados com regulamentações menos rigorosas para evitar as restrições da EUDR, o que representa riscos mais altos para commodities como café e cacau devido ao capital mais baixo, lotes menores e desmatamento recente2. Por oposição, as fazendas de grande escala seriam menos afetadas, pois teriam desmatado antes de 2021 e teriam a capacidade financeira para obter os dados necessários. De acordo com algumas ONGs da UE, os pequenos proprietários seriam, portanto, levados a explorar mercados com menos exigências de informações. Os países produtores também expressaram preocupações, temendo um desvio substancial do comércio e manifestando preocupação com as mudanças na dinâmica do mercado, sugerindo que as empresas podem mudar os produtos ou as estratégias de produção se os benefícios percebidos da conformidade com a regulamentação não justificarem os custos associados. Isso, por sua vez, pode prejudicar a contribuição do regulamento para os esforços de redução do desmatamento nesses países.

A avaliação de impacto da Comissão em 2021 reconheceu a possível transferência de exportações sem desmatamento para mercados fora da UE com regulamentações menos rigorosas. Ela reconheceu especificamente possíveis impactos econômicos em países terceiros, incluindo custos de conformidade mais altos e mudanças nos fluxos comerciais. A avaliação propôs duas abordagens para minimizar essa mudança: (a) implementar o sistema de benchmarking para incentivar os países produtores a combater o desmatamento e (b) enfatizar a cooperação internacional para um padrão global. Alguns atores da UE entrevistados argumentaram, em especial, que a UE já se engajou no diálogo com os países produtores para harmonizar as regras, alinhando-se aos objetivos da EUDR de evitar o desmatamento e a degradação florestal globais. No entanto, há inconsistências na abordagem da UE para lidar com o vazamento de produtos não livres de desmatamento para outros mercados globais.

Em primeiro lugar, a UE defende parcerias mais fortes com os países produtores e a cooperação internacional com as principais nações consumidoras para estabelecer uma “igualdade de condições globais” no combate ao desmatamento e à degradação florestal. Entretanto, há preocupações quanto à consistência interna da narrativa da UE. Ao mesmo tempo em que enfatiza os resultados positivos na redução da produção e do consumo de commodities ligadas ao desmatamento, a UE reconhece um aumento simultâneo na demanda por essas commodities, principalmente na Ásia. A UE também pede que outros grandes países consumidores com iniciativas semelhantes, como o Reino Unido e os Estados Unidos, tomem medidas adicionais. Essa postura dupla levanta dúvidas sobre a eficácia da regulamentação da UE e a ausência de um sistema robusto de apoio e parceria.

Em primeiro lugar, apesar do foco da UE em evitar o desvio de comércio ao incorporar objetivos de desenvolvimento sustentável em futuros acordos de livre comércio, os objetivos da EUDR diferem significativamente da expansão das fronteiras agrícolas e dos impactos socioambientais associados observados nos acordos comerciais da UE com os países produtores (por exemplo, o Acordo Comercial UE-Mercosul). Em segundo lugar, as medidas de mitigação propostas essencialmente ignoram a dinâmica histórica do comércio global e a exploração de recursos que influenciaram os territórios de produção e extração. A exploração mais aprofundada deste ponto será abordada nas próximas publicações.

3. Mudança para outros ecossistemas não cobertos pela definição “livre de desmatamento”.

As florestas são definidas na EUDR como “terras com mais de 0,5 hectares, com árvores de mais de 5 metros de altura e cobertura de copa superior a 10%, ou árvores capazes de atingir esses limites in situ, excluindo terras predominantemente agrícolas ou urbanas” (Art. 2.4). A avaliação de impacto reconheceu o risco de deslocamento do desmatamento e da degradação florestal para outros ecossistemas excluídos, levantando preocupações sobre as possíveis consequências da exclusão de ecossistemas ricos em biodiversidade e com alto estoque de carbono. As partes interessadas levantaram a preocupação de que, no futuro, a expansão agrícola possa se deslocar das “florestas” para outros ecossistemas naturais devido a essa exclusão.

A mudança esperada na produção agrícola para outros ecossistemas decorre da preocupação de que regulamentações mais rígidas em uma região possam deslocar as atividades de desmatamento para outras áreas, resultando em uma transferência em vez de uma redução genuína do desmatamento3. O escopo limitado da regulamentação apresenta desafios, podendo levar a maiores impactos socioambientais nos ecossistemas excluídos. Isso levanta preocupações sobre a coerência da política da EUDR, considerando as importações significativas da UE de áreas não cobertas pelo regulamento, como o Cerrado brasileiro. A cobertura restrita também pode contribuir para a conversão do uso da terra, levando ao aumento da demanda por terras em regiões não tradicionalmente associadas ao desmatamento. Isso pode resultar na expansão da fronteira agrícola ou na competição por terras, aumentando a pressão sobre os territórios de povos indígenas, comunidades locais e outros grupos afetados pela regulamentação.

Figura 2: Veredas do bioma Cerrado, centro-oeste do Brasil. Foto: James Roegen Calaffi no Unsplash.

A UE promete discussões futuras sobre a expansão e diversificação da definição da EUDR para abordar o impacto da UE na conversão e degradação de ecossistemas naturais (Artigo 34(2)). Essa possível expansão visa incluir pastagens, turfeiras e zonas úmidas. Apesar das garantias, as discussões entre as partes interessadas da UE sobre a ampliação da cobertura dos ecossistemas têm sido limitadas. Alguns argumentam que essa não é uma questão iminente e pode ser abordada nas próximas revisões, enquanto outros consideram a estratégia atual de começar com um conjunto limitado de ecossistemas como uma abordagem pragmática. A avaliação de impacto destaca mais especificamente que “uma expansão do escopo nesta fase foi considerada prejudicial para a eficácia e a aplicabilidade das medidas políticas aqui avaliadas”.

Portanto, há uma crença predominante de que o processo de revisão da EUDR abordará eficientemente as consequências adversas. No entanto, atualmente temos duas reservas quanto a essa suposição: o regulamento (a) ignora as intrincadas relações socioecológicas que envolvem os ecossistemas e (b) não considera outras transformações de territórios além da produção de commodities agrícolas, como atividades de logística, que exercem maior pressão sobre os ecossistemas. Consequentemente, em ambos os casos, mesmo que uma commodity atenda aos requisitos da EUDR, ela ainda pode estar ligada ao desmatamento em outra região.

4. Mudança para outras commodities não cobertas pelo escopo do regulamento

A lista inicial de sete commodities no âmbito da EUDR pode levar a uma mudança do desmatamento ou de práticas insustentáveis de commodities regulamentadas para não regulamentadas. Reconhecida na avaliação de impacto, essa mudança prevista poderia levar ao deslocamento de atividades de desmatamento para outras commodities, resultando em uma transferência em vez de uma redução genuína do desmatamento. As discussões durante o processo decisório da EUDR enfatizaram a necessidade de incluir mais commodities importadas pela UE ligadas ao desmatamento global, como borracha natural, abacate, laticínios, cana-de-açúcar, milho e trigo. As reuniões de várias partes interessadas, parte do Grupo de Especialistas da Comissão/Plataforma de Múltiplas Partes Interessadas sobre Proteção e Restauração das Florestas Mundiais, ressaltaram a preocupação de que uma lista limitada poderia desviar a atenção de questões mais amplas de “sustentabilidade” e levar a consequências não intencionais. Embora a lista inicial tenha sido ampliada para incluir a borracha natural, commodities importantes como o milho continuam excluídas.

As partes interessadas preveem que o processo de revisão tratará disso expandindo gradualmente a estrutura regulatória com base no impacto das commodities sobre o desmatamento e a degradação florestal (Art. 34.2). Essa abordagem também é favorecida na avaliação de impacto, sugerindo que o processo de revisão ajudará a mitigar as tendências de mudança nas commodities ligadas ao desmatamento. Entretanto, embora a mudança para outras commodities não cobertas pelo escopo tenha sido reconhecida na avaliação de impacto, o que não foi levado em conta é o cenário em potencial em que regulamentações mais rígidas sobre as commodities cobertas resultam na substituição dessas commodities por outras, causando, consequentemente, desmatamento fora do escopo da regulamentação.

5. Mudanças na posse da terra e maior concentração do mercado

Camponeses, fazendeiros e pequenos produtores enfrentam desafios cada vez maiores, perdendo o acesso a suas terras devido a investimentos em grande escala e à produção de commodities agrícolas4. Eles também fazem parte dos segmentos da sociedade que mais ganhariam com a reforma agrária, a alocação de novas terras agrícolas ou a redistribuição de terras atualmente em posse de grandes entidades agrícolas. A conexão histórica entre o comércio de longa distância, a industrialização agrícola e a concentração da propriedade da terra exacerbou as desigualdades de poder nos setores agrícolas globais. Consequentemente, esse padrão histórico resultou no deslocamento de indivíduos e comunidades, restringindo seus direitos, autonomia, autossuficiência e autoridade de tomada de decisões.

Entretanto, a EUDR parece não se importar com a conexão entre o comércio de longa distância e a concentração de terras, apesar de reconhecer o impacto desigual em diferentes escalas e métodos de produção agrícola. Apesar desse reconhecimento, faltam medidas específicas para lidar com a possível consolidação do capital agrícola devido ao custo mais alto do comércio com a UE. O uso obrigatório de tecnologia e a obrigação de garantir a transparência e a rastreabilidade podem não apenas intensificar o acesso ao mercado e as desigualdades, mas também levar a uma maior concentração da propriedade da terra entre alguns poucos atores dominantes capazes de atender às exigências da EUDR e investir em terras agrícolas. Vários pontos importantes merecem atenção.

Figura 3: Campo de soja no Planalto Santareno, Estado do Paraná, Brasil. Foto: Rafaella Sena.

Primeiro, a pesquisa sugere que a EUDR poderia aumentar o preço da “terra limpa” (não afetada pelo desmatamento antes de 31 de dezembro de 2020), tornando-a mais lucrativa para os grandes comerciantes5. Isso limitaria o acesso a novas terras àqueles com grande capital. Além disso, o aumento do preço da “terra limpa” pode incentivar pequenos agricultores e pequenos proprietários a vender suas terras para grandes corporações. Ironicamente, a pressão para vender terras agrícolas de propriedade de camponeses e pequenos agricultores a grandes comerciantes poderia levar esses atores a se mudarem para áreas florestais para sustentar seus meios de subsistência, o que poderia levar a um novo desmatamento. 

Em segundo lugar, o cenário EUDR favorece as grandes corporações em detrimento dos camponeses e agricultores locais. Os custos de conformidade para as empresas são mais altos quando se adquire produtos de muitos pequenos proprietários, o que pode levar as grandes empresas a reestruturar as cadeias de suprimentos, trabalhando com menos fornecedores maiores ou adquirindo diretamente de produtores de grande escala com maior capacidade de conformidade. Essa mudança poderia excluir e marginalizar os pequenos proprietários e as cooperativas, fortalecendo o poder de mercado dos principais participantes em detrimento de uma distribuição igualitária da influência do mercado. 

Em terceiro lugar, a EUDR pode levantar preocupações sobre futuras reformas agrárias e a distribuição de terras não cultivadas para fins agrícolas. Países como a Bolívia, por exemplo, tradicionalmente identificaram “terras fiscais” ou terras públicas como áreas destinadas a garantir o acesso à terra para agricultores, grupos indígenas e coletividades com acesso limitado ou inexistente à terra. Algumas dessas terras, caracterizadas por florestas primárias e já utilizadas por comunidades locais e povos indígenas, mas não tituladas ou desmatadas, não teriam a oportunidade de serem integradas às cadeias de valor que atendem ao mercado da UE sob a estrutura da EUDR. Essa limitação pode afetar a gama de oportunidades disponíveis para os agricultores com acesso à terra e para aqueles que podem se beneficiar da futura distribuição de “terras fiscais”. Embora a impossibilidade de converter a terra em espaço livre para as commodities da UE possa incentivar a produção agroecológica, o consumo local de alimentos ou outras práticas socioculturais e econômicas, essas alternativas parecem menos lucrativas financeiramente e não estão alinhadas com a cadeia de suprimentos prevista pela UE.

No entanto, as mudanças relacionados à concentração de terra e de mercado nos territórios de produção receberam pouca atenção dos stakeholders da UE. A avaliação de impacto reconhece apenas a possibilidade de mudanças indiretas no uso da terra, negligenciando questões mais amplas que afetam pequenos agricultores e camponeses que não estão atualmente nas cadeias alimentares transnacionais. A avaliação de impacto sugere que isso seja resolvido por meio da expansão gradual do escopo do produto e do aumento das parcerias com os países produtores. Entretanto, o regulamento atualmente não fornece detalhes sobre os mecanismos de participação nem sobre as desigualdades de poder existentes entre grupos e empresas que buscam explorar recursos e populações locais. Ainda não está claro até que ponto as delegações da UE estão atualmente engajadas em iniciativas para lidar com esses riscos, incluindo transferências financeiras, cooperação para o desenvolvimento e engajamento em nível comunitário nos países produtores.

6. Mudança da segurança alimentar local para culturas comerciais

As comunidades locais, os pequenos proprietários, os camponeses e os agricultores são cada vez mais afetados pelo estabelecimento e pela intensificação das cadeias alimentares industriais e transnacionais, mesmo quando não cultivam commodities alimentares globais6. Apesar de ser saudada pelos atores da UE como uma regulamentação inovadora para lidar com o desmatamento e a degradação florestal na produção agrícola, a EUDR se baseia principalmente em um modelo agrícola voltado para a exportação, negligenciando os possíveis efeitos colaterais em terras e territórios não integrados ao mercado da UE. Argumentamos que as terras agrícolas são um aspecto crucial, porém pouco discutido da EUDR, pois a regulamentação pode levar à transformação de terras cultivadas em áreas usadas principalmente para a produção de commodities exportadas cobertas pela regulamentação. É interessante notar que a conversão de terras agrícolas em terras voltadas para a exportação não é motivo de preocupação nos termos da EUDR.  Se esse for o caso, espera-se que essa mudança afete a segurança alimentar local pelos seguintes motivos.

Em primeiro lugar, a mudança da produção de terras para consumo local para terras destinadas à produção de commodities da UE pode afetar a disponibilidade e o acesso aos alimentos produzidos localmente, especialmente para membros vulneráveis das populações, o que pode piorar a insegurança alimentar nos territórios afetados. A substituição de alimentos por culturas comerciais pode aumentar os retornos econômicos dos agricultores, mas também pode diminuir a disponibilidade de nutrientes e alimentos, levando a repercussões em termos de inflação e abastecimento. 

Em segundo lugar, a abordagem da UE sobre a “ecologização das cadeias alimentares” promove e normaliza os sistemas alimentares mercantilizados, podendo deslocar ou obrigar os camponeses e agricultores a adotar práticas orientadas para o mercado. Apesar de menos de 30% dos alimentos produzidos globalmente serem comercializados e do papel significativo que os agricultores familiares e de pequena escala desempenham no suprimento global de alimentos7, os incentivos financeiros e regulatórios para a mudança para culturas comerciais podem aumentar a pressão sobre a terra, as transações e a concentração. Além disso, essa mudança pode forçar os agricultores a se afastarem da terra para ambientes urbanos e situações precárias, exacerbando questões socioeconômicas entre comunidades locais marginalizadas, pequenos agricultores e trabalhadores agrícolas que atualmente não estão envolvidos na produção dessas commodities, mas que enfrentam pressões financeiras e outras formas de pressões (il)legais sobre suas terras. 

Em terceiro lugar, a produção intensificada de commodities agrícolas pode resultar em mudanças insustentáveis no uso da terra, convertendo-a de métodos agroecológicos ou agroflorestais diversos e baseados nas comunidades locais em monocultura e práticas com uso intensivo de produtos químicos. Isso levanta questões sobre os objetivos mais amplos de “sustentabilidade” do regulamento, caso ele não aborde ou se oponha à transformação da terra de uma agricultura localmente diversificada e baseada nas comunidades para uma monocultura voltada para a exportação. É necessário reconhecer o possível impacto da decisão regulatória da UE no incentivo a uma mudança para métodos de produção insustentáveis do ponto de vista ambiental e social em terras destinadas à produção local de alimentos.

O regulamento, embora repleto de palavras-chave sugestivas, como “produção agrícola sustentável”, parece estar enraizado na agricultura baseada em commodities e voltada para a exportação. Embora a posição oficial da UE indique abertura para visões agrícolas alternativas e um impulso para a agricultura “sustentável”, o regulamento oferece pouco espaço para o engajamento com atores não estatais e não corporativos e sua compreensão sobre a evolução dos sistemas alimentares. 

Há também um entendimento limitado entre os atores da UE com relação aos impactos da EUDR sobre o direito à alimentação e à segurança alimentar nos territórios que já produzem para a UE e naqueles que estão potencialmente mudando para a produção voltada para a exportação. Apesar das garantias de que o regulamento e as futuras parcerias evitarão a exclusão dos “pequenos proprietários” das cadeias de fornecimento de commodities e aliviarão as repercussões econômicas, esse apoio não promove necessariamente o estabelecimento de mercados locais e modos regionais de produção e consumo. Embora reconheça a ligação entre o comércio internacional e a perda de biodiversidade, a UE, ao buscar objetivos de “sustentabilidade”, parece presumir que os pequenos proprietários, camponeses e agricultores de países terceiros são os principais responsáveis pela alimentação da Europa.

7. Conclusão

O foco restrito do regulamento sobre as causas do desmatamento e da degradação florestal pode resultar em consequências adversas para o meio ambiente e as práticas socioeconômicas. Assim como o Acordo Verde da UE está fazendo em outras áreas da economia, a EUDR parece sugerir que pode separar o comércio global de suas externalidades socioambientais. No entanto, isso pode ser viável em relação ao impacto do consumo individual sobre as florestas primárias após 1º de janeiro de 2022, mas não necessariamente se aplica às mudanças e aos efeitos locais, à medida que as autoridades públicas, os comerciantes globais e os produtores navegam pelas novas limitações e “oportunidades” apresentadas pelo regulamento. Para concluir, o foco deve ser dado a três aspectos principais: (a) reconhecer que os efeitos da EUDR vão além da dinâmica do mercado e dos fatores econômicos; (b) reconhecer que não há uma compreensão inequívoca dos sistemas socioecológicos, o que exige maior atenção aos povos indígenas, às comunidades locais e a outros grupos sociais historicamente marginalizados; (c) abordar e reconhecer o papel histórico e atual da UE no comprometimento da segurança alimentar e na exacerbação da concentração de terras em países terceiros.

Notas finais


  1. Boillat, S., Martin, A., Adams, T., Daniel, D., Llopis, J., Zepharovich, E., … & Pascual, U. (2020). Why telecoupling research needs to account for environmental justice (Por que a pesquisa de teleacoplamento precisa levar em conta a justiça ambiental). Journal of land use science, 15(1), 1-10; Liu, J., Dou, Y., Batistella, M., Challies, E., Connor, T., Friis, C., & Sun, J. (2018). Spillover systems in a telecoupled Anthropocene: typology, methods, and governance for global sustainability. Current Opinion in Environmental Sustainability, 33, 58-69; Friis, C. et al. (2016). From teleconnection to telecoupling: taking stock of an emerging framework in land system science. J Land Use Sci. 11, 131-153 ↩︎
  2. Fern, EU law on deforestation: Policy makers prioritise trees over people, available at: https://www.fern.org/publications-insight/eu-law-on-deforestation-policy-makers-prioritise-trees-over-people/; FTAO, Deforestation-free Supply Chains, available at: https://fairtrade-advocacy.org/our-work/eu-policies/sustainable-and-deforestation-free-supply-chains/ ↩︎
  3. The risk of leakage and displacement from protected to unprotected regions is well-documented in land system science: Meyfroidt, P., Börner, J., Garrett, R., Gardner, T., Godar, J., Kis-Katos, K. & Wunder, S. (2020). Focus on leakage and spillovers: informing land-use governance in a tele-coupled world. Environmental Research Letters, 15(9); Moffette, F., & Gibbs, H. K. (2021). Agricultural displacement and deforestation leakage in the Brazilian Legal Amazon. Land Economics, 97(1), 155-179;  Villoria, N., Garrett, R., Gollnow, F., & Carlson, K. (2022). Leakage does not fully offset soy supply-chain efforts to reduce deforestation in Brazil. Nature Communications, 13(1), 5476 ↩︎
  4. Ferrando, Tomaso, and Elizabeth Mpofu. “Peasants as “Cosmopolitan Insurgents”.” (2022): 97 ; Bombardi, L. M. (2021). Geography of Asymmetry: The Vicious Cycle of Pesticides and Colonialism in the Commercial Relationship between Mercosur and the European Union. The Left group in the European Parliament, European Parliament, 20;  Barrantes, MA Naranjo, A. K. K. Rahn, J. van den Berg, and E. D. Berkhout. “Deforestation and forest degradation in coffee supply chains: Wageningen Economic Research policy brief.” (2023). ↩︎
  5. Ferrando, Tomaso, and Elizabeth Mpofu. “Peasants as “Cosmopolitan Insurgents”.” (2022): 96. ↩︎
  6. a) S. Blondeau, Enhancing the livelihood of family farmers with the law, FAO Legal Papers, No. 112. Roma, FAO; FAO, 2021; b) “Small family farmers produce a third of the world’s food” (Pequenos agricultores familiares produzem um terço dos alimentos do mundo). Disponível em: https://fao.org/newsroom/detail/Small-family-farmers-produce-a-third-of-the-world-s-food/en; c) F. Pendrill et al. Agricultural and forestry trade drives large share of tropical deforestation emissions (O comércio agrícola e florestal gera grande parte das emissões do desmatamento tropical). Glob. Environ. Change 56, 1-10 (2019). doi: 10.1016/ j.gloenvcha.2019.03.002. ↩︎
  7. World Rainforest Movement, “Deceit and destruction behind FAO’s forest definition” (Engano e destruição por trás da definição de floresta da FAO), 21 de março de 2018, https://www.wrm.org.uy/publications/deceit-and-destruction-behind-faos-forest-definition ↩︎
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